Que seja um Bom Ano, Feliz,
com surpresas boas e que sempre
nos sintamos aconchegados e queridos!
Em relação à escolha da carta depois, com as vossas opções, direi alguma coisa. Até para o ano!...
Um caderno de apontamentos onde os sentimentos e as emoções possam encher-nos a alma e as palavras possam preencher estas "folhas"!
Suspensão Coloidal
«Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.
Anda o cego a tocar La Violotera,
e eu a vê-lo e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar
Que riso perto, que aflição distante,
que infíma débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta draga carburante,
rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?
Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele, e a mim».
_______________________________António Gedeão
Tempo de Poesia
«Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outo dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qua amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia».
_______________________________António Gedeão
---Cinema - ao domingo.
Assim foi mais um domingo que parecia cinzento do lado de fora da janela,
que parecia cinzento do lado de cá da epiderme.
Sim, cinzento.
Cinema - ao domingo.
Dois filmes que deram um toque.
Sossegaram a chuva lá fora, as lágrimas cá dentro.
O filme da noite, apenas e só uma comédia, fraquinha, mas que sempre deu para umas gargalhadas soltas, desinibidas, alegres.
O filme da tarde, diferente. Banal à primeira vista. Surreal, também.
Levanta questões: o que foi o teu passsado? o que queres do teu futuro? e tudo isso nas mãos abertas do presente... «Nunca é tarde», será?
«RECEITA PARA FAZER O AZUL
Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
Não que eu seja muito mais velha (quem me conhece, sabe até que nem essa idade completei) mas rapazote é a palavra mais adequada que encontro para ele. Homem identifico com alguém mais velho, quase (ou até mesmo) de outra geração. Rapaz é mais comum, é corriqueiro dizer-se. Podia sempre optar por moço, moçoilo, garoto... Mas rapazote parece-me mais ternurento e ao mesmo tempo mais enquadrado com a pessoa de que vos escrevo.
Rapazote. Era apenas e só um rapazote de 25 anos. Trabalhava num recanto da cidade. Um trabalho como outro qualquer – como se diz por aí. Um trabalho que o alegrava, que o fazia conviver com pessoas de muitas idades e feitios, com desiguais preferências e estilos, com maneiras de ser e estar divergentes. Um trabalho que não era o seu sonho ainda. Tirara um curso superior mas o emprego nessa área era difícil de arranjar. Então resolveu trabalhar ali mesmo pois queria ganhar a sua independência e não estar o resto da vida a sobrecarregar os pais que tantos sacrifícios têm feito para pôr a estudar os quatro filhos.
O trabalho que exercia permitia-lhe, por um lado, essa independência de que vos falava, por outro lado, um sorriso nos lábios diariamente. Além do mais, repensava o que fazer da vida e estava a ponderar as sérias hipóteses de vir a tirar um outro curso, desta vez mais próximo daquilo que é o seu sonho ou, quem sabe, o seu próprio sonho. Até lá, vivia cada dia, com regular normalidade - aos olhos dos demais.
Certo dia, entrou pelo restaurante uma moçoila comum em qualquer parte do mundo, digo eu. Mas desde logo, seus olhos ganharam um brilho diferente e, quando foi servir a sua mesa, não conseguiu mesmo evitar corar.
O seu rosto, levemente moreno do fim de semana de férias da Páscoa que passou em praias espanholas, não escondeu a cor ruborizada que ganhou nos instantes em que dirija as habituais palavras a quem se sentava no Come Bem para mais uma refeição.
A rapariga pediu o prato do dia e uma cola-cola..
- Cola-cola light? – perguntou.
A rapariga riu e disse que não.
Ele seguiu na direcção do balcão e esgueirou-se para a cozinha. Pediu à cozinheira mais um prato do dia. Foi até à arca tirou de lá uma coca-cola. E ficou pensativo, com o copo a rodar de uma mão para a outra e a cabeça na lua.
- Rapaz, as mesas 7 e 9 estão a pedir a conta. As mesas 1 e 25 querem fazer os pedidos. Mexe-te. Que se passa contigo hoje?
Estremeceu. Caiu dos seus sonhos para a realidade vulgar de mais um restaurante em hora de almoço. Não respondeu. Seguiu de volta à sala, deixou as contas nas mesas 7 e 9 e perguntou ao cavalheiro da mesa 14 se podia trazer o cafezinho. Mas a resposta afirmativa do cliente não o levou de volta ao balcão. Antes disso foi de novo à mesa da rapariga...
- Desculpe, deseja a sua cola-cola com ou sem limão?!
- Sem limão. Apenas pedi uma coca-cola! – sorriu.
Voltou a ruborizar mas, desta vez, ela nem teve tempo de reparar em tal facto pois ele de imediato voltou para a cozinha.
Bebeu uma garrafa de água de um trago apenas.
Continuou o seu trabalho. Tentou manter a atenção no que fazia e até conseguiu, tirando os pratos trocados entre as meses 8 e 12, tirando a escorregadela que deu quando ia levar a conta ao Sr. Francisco e tirando os descafeínados que trocou por bicas cheias a jovens que estavam ao balcão.
A rapariga que o fazia corar partiu e aos seus olhos o restaurante foi tomado de um breu profundo, de um dióxido de carbono irrespirável. As semanas que se seguiram também lhe pareceram sem cor, sem brilho, sem glamour. Sempre que saía à noite achava tudo monótono, doentio, sem ritmo. As conversas com os amigos pareciam frias, fúteis, machistas. O telemóvel esteve desligado cerca de 2 semanas. A sua mãe começou mesmo a achá-lo mais magro.
- Oh mãe, não estou nada. Não é nada, está tudo bem.
Ele estava ciente que andava esquisito. Mas, conscientemente, não sabia bem o porquê daquele estado.
Dia de folga. Excepcionalmente (desde há muito tempo) dormiu 12 horas a fio. Faltavam quinze minutos para a uma da tarde quando resolveu ir até ao Come Bem pois ainda não tinha fome para o almoço e apeteceu-lhe dar uma volta e quem sabe ajudar um pouco por lá.
Entra. Ao dizer o seu caloroso Bom dia a toda uma série de pessoas que estavam perto do balcão, passa os olhos por toda a sala e, no mesmo canto de há algumas semanas atrás, viu sentar-se (naquele instante preciso) com tamanha delicadeza e encanto a rapariga morena, de olhos castanhos.... Pulou para o outro lado do balcão e aprontou-se para mais um dia de trabalho, mesmo sendo de merecido descanso.
- Bom dia!
- Boa tarde!
- Já fez a sua escolha?
- Hummm .....
- Se me permite posso aconselhar-lhe o prato do dia, que está hoje ainda mais delicioso que outrora. Para beber uma coca-cola bem fresca, sem limão.
- Quase perfeito... E se eu hoje quisesse variar? E não pedisse o habitual?
- Seria, com certeza, uma óptima escolha. Sugerir-lhe uma rosa branca seria muito irreverência da minha parte? – e retirou do arranjo que estava próximo do pórtico poente uma rosa linda, inebriando um perfume único, que lhe estendeu.
- Agradeço pois, com simpatia, se bem que sempre diminuta perto da sua mas... Vou querer mesmo o prato do dia e cola sem limão!
O rapaz não estava em si. Desta vez não corou perto da rapariga de olhos castanhos (de quem nem sabia o nome) mas quando falava com o patrão ficou vermelho que até foi motivo de galhofa.
Não voltou a dizer mais garçolas e limitou-se, nos momentos seguintes, a comportar-se como o mero garçon.
A rapariga de olhos castanhos estava mais sorridente do que quando entrara ali. Pegou no jornal regional antes de almoçar, folheou de trás para a frente as folhas compridas e desajeitadas. O destaque da primeira página, sobre um lançamento de um livro, tomou-lhe alguma atenção. Atendeu duas chamadas que a fizeram rir um pouco. Tudo isto visto pelo olhar atento do rapazote.
Teve uma ideia! Abriu dezenas de gavetas dos armários que ficavam por detrás do balcão na expectativa de encontrar uma folha de papel branca não amarrotada e sem símbolos publicitários a cervejas ou algo do género.
Encontrou, a muito custo e quase a desesperar, uma folha. Tirou a sua caneta de tinta permanente do bolso esquerdo da camisa, refugiou-se num recanto mais calmo e decidiu escrever. Um jorro de palavras invadia-lhe a mente mas nada ainda havia sido escrito na folha. Interrompeu o exercício de selecção de palavras para ir tirar três cafés e fazer a conta de mais uma mesa.
Voltou a pegar na caneta e escreveu:
A delicadeza de tudo o que contemplo
em si e a magia que fica no ar quando está
perto fazem-me cometer a ousadia de lhe
enviar este bilhete.
As palavras não são o meu forte mas
se for preciso transformo-me em escritor
para captar a sua atenção: aceita tomar o
café mais tarde, em local agradável e em
minha companhia?
Às 16horas no jardim?
Filipe
Atrevimento?!
Quando levou a conta deixou, por baixo do talão, o bilhete, dobrado em quatro partes milimetricamente iguais.
Não me pareceu, a mim pelo menos, que tivesse havido surpresa na descoberta do bilhete. O que lhe ia na alma não detectei mas fiquei curiosa. O rapaz seguia, de longe, todos os seus movimentos. Ela colocou o dinheiro no pratinho. Retirou o bilhete e colocou-o em cima da mesa. Ergueu-se, colocou a carteira na mala. Fechou-a. Segurou o papel na mão esquerda e quando se preparava para ajeitar a cadeira o rapazote chegou perto da mesa (e na certeza que ela não tinha sequer aberto o bilhete) perguntou:
- Deseja mais alguma coisa?
A resposta veio, serena e doce.
- Há instantes especiais, não há?
Tentou responder - os movimentos dos seus lábios comprovaram isso - mas não se ouviu som algum. Ela sorriu abertamente e disse:
- Há palavras que se pressentem mesmo sem antes as lermos...
Que venha o sol o vinho e as flores
Marés, canções de todas as cores
Guerras esquecidas por amores;
Que venham já trazendo abraços
Vistam sorrisos de palhaços
Esqueçam tristezas e cansaços;
Que tragam todos os festejos
E ninguém se esqueça de beijos
Que tragam prendas de alegria
E a festa dure até ser dia;
Que não se privem nas despesas
Afastem todas as tristezas
Pão vinho e rosas sobre as mesas;
Que tragam cobertores ou mantas
E o vinho escorra p'las gargantas
E a festa dure até às tantas;
Que venham todos de vontade
Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos!
Que venham todos de vontade
Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos!
«No teu Poema
existe a esperança acesa atrás do muro,
existe tudo o mais que ainda escapa
um verso em branco à espera de futuro»
Imagem.
Fotografia.
Tempo que passa a correr.
Contraste.
Tempo que teima em não passar.
Tinta fresca que escorre do pincel.
Tela velha, anos a passar.
Sol de Abril.
Memória eterna.
Sentimento que ainda não abandonei
(não consigo).
Perdida.
Reencontrada nos seus olhos que reflectem o
Rio.
Vento e Sol sobre o Rio.
Número.
Poema.
Contraste.
Contorno de teu corpo.
Tuas palavras,
Hoje feitas em quadro.
Silêncios...
Certeza.
- Achei muito engraçado (re)encontrar este poema. Não foi escrito no mesmo local dos últimos. É um poema bem mais antigo, mas fala de "um rio" com um ritmo semelhante. Então... em contraste de datas, em sintonia de sons e lugares, de águas que a ritmo branco tocam a praia, fica o poema e o apontamento.
A vida passa-me à frente
como se assistisse a um filme de outro realizador,
que não eu.
Tudo dorme.
Eu contemplo as estrelas:
fixo o olhar nessa mesma
que também olhas daí.
Escolho a cor,
O timbre,
O cheiro...
Começo a escrever.
O sabor oscila entre o chocolate que derreto na boca
e o aveludado gole que tomo da taça alta,
reluzente na luz [áurea] da vela.
A madrugada nunca se repete.
Pode desejar-se em formas,
cores, trajectos, presenças,
embrulhos, laço, presentes...
Madrugada serena e fria esta, que se aproxima, em Abril.
Cessem as memórias de outros tempos,
de outros sonhos,
desse beijo,
deste amor.
Cesse a madrugada que hoje me traz o teu rosto
no reflexo da Lua.
Cesse o odor quente dos teus lábios
que sinto neste chocolate quente que sorvo antes de adormecer.
Madrugada.
Frio por entre a frincha da janela que teimo em deixar entreaberta, para ti.
Sonhos e desabafos que estas estrelas tão bem conhecem
que sabem de cor
que pintam de olhos fechados
e escrevem sem ser preciso pena, tinta ou papiro.
Esta será ainda a nossa madrugada.
O tempo vai passando e a caixa das cartas que tenho escrito e não enviado mantém-se igual. Até mesmo o registo das que enviei, se mantém parado.
Isto não quer dizer que eu não tenha escrito, não seria verdade de o dissesse. Mas as cartas, esta forma tão peculiar de escrever, de nos dirigirmos a alguém e de nos mostrarmos de alma e coração não têm estado nas minhas acções diárias.
É isso mesmo, tenho de pôr a correspondência em dia, pensei ainda há pouco quando folheava um livro de Fernando Pessoa e encontrava nele algumas cartas que escrevera, em tempos, e que me deixaram deliciada pelo conteúdo, pela harmonia das conjunções das palavras e dos sentimentos que trazem consigo. Vou escrever uma carta (ou até mais) mesmo que não a envie.
“Como não quero que diga que não lhe escrevi, por efectivamente não lhe ter escrito, estou escrevendo” afirmava Fernando Pessoa numa das cartas a Ofélia Queirós.
Também vou escrever, para que não acusem de o não ter feito... mas sobretudo pela magia que uma carta tem!
- Votos de uma Páscoa reconfortante e ... cheia de palavras e chocolates e amêndoas! ;-)
E se querem alguma foto bonita no meio deste sítio de poesia e de prosa, nem sempre poética, torçam para que volte a seja agendada logo logo...
- os disparates que se escrevem no computador do trabalho, xiii.... Não liguem, sim? :)