quinta-feira, setembro 14, 2006

Rapazote

Rapazote. Era apenas e só um rapazote de 25 anos.

Não que eu seja muito mais velha (quem me conhece, sabe até que nem essa idade completei) mas rapazote é a palavra mais adequada que encontro para ele. Homem identifico com alguém mais velho, quase (ou até mesmo) de outra geração. Rapaz é mais comum, é corriqueiro dizer-se. Podia sempre optar por moço, moçoilo, garoto... Mas rapazote parece-me mais ternurento e ao mesmo tempo mais enquadrado com a pessoa de que vos escrevo.

Rapazote. Era apenas e só um rapazote de 25 anos. Trabalhava num recanto da cidade. Um trabalho como outro qualquer – como se diz por aí. Um trabalho que o alegrava, que o fazia conviver com pessoas de muitas idades e feitios, com desiguais preferências e estilos, com maneiras de ser e estar divergentes. Um trabalho que não era o seu sonho ainda. Tirara um curso superior mas o emprego nessa área era difícil de arranjar. Então resolveu trabalhar ali mesmo pois queria ganhar a sua independência e não estar o resto da vida a sobrecarregar os pais que tantos sacrifícios têm feito para pôr a estudar os quatro filhos.

O trabalho que exercia permitia-lhe, por um lado, essa independência de que vos falava, por outro lado, um sorriso nos lábios diariamente. Além do mais, repensava o que fazer da vida e estava a ponderar as sérias hipóteses de vir a tirar um outro curso, desta vez mais próximo daquilo que é o seu sonho ou, quem sabe, o seu próprio sonho. Até lá, vivia cada dia, com regular normalidade - aos olhos dos demais.

Certo dia, entrou pelo restaurante uma moçoila comum em qualquer parte do mundo, digo eu. Mas desde logo, seus olhos ganharam um brilho diferente e, quando foi servir a sua mesa, não conseguiu mesmo evitar corar.

O seu rosto, levemente moreno do fim de semana de férias da Páscoa que passou em praias espanholas, não escondeu a cor ruborizada que ganhou nos instantes em que dirija as habituais palavras a quem se sentava no Come Bem para mais uma refeição.

A rapariga pediu o prato do dia e uma cola-cola..

- Cola-cola light? – perguntou.

A rapariga riu e disse que não.

Ele seguiu na direcção do balcão e esgueirou-se para a cozinha. Pediu à cozinheira mais um prato do dia. Foi até à arca tirou de lá uma coca-cola. E ficou pensativo, com o copo a rodar de uma mão para a outra e a cabeça na lua.

- Rapaz, as mesas 7 e 9 estão a pedir a conta. As mesas 1 e 25 querem fazer os pedidos. Mexe-te. Que se passa contigo hoje?

Estremeceu. Caiu dos seus sonhos para a realidade vulgar de mais um restaurante em hora de almoço. Não respondeu. Seguiu de volta à sala, deixou as contas nas mesas 7 e 9 e perguntou ao cavalheiro da mesa 14 se podia trazer o cafezinho. Mas a resposta afirmativa do cliente não o levou de volta ao balcão. Antes disso foi de novo à mesa da rapariga...

- Desculpe, deseja a sua cola-cola com ou sem limão?!

- Sem limão. Apenas pedi uma coca-cola! – sorriu.

Voltou a ruborizar mas, desta vez, ela nem teve tempo de reparar em tal facto pois ele de imediato voltou para a cozinha.

Bebeu uma garrafa de água de um trago apenas.

Continuou o seu trabalho. Tentou manter a atenção no que fazia e até conseguiu, tirando os pratos trocados entre as meses 8 e 12, tirando a escorregadela que deu quando ia levar a conta ao Sr. Francisco e tirando os descafeínados que trocou por bicas cheias a jovens que estavam ao balcão.

A rapariga que o fazia corar partiu e aos seus olhos o restaurante foi tomado de um breu profundo, de um dióxido de carbono irrespirável. As semanas que se seguiram também lhe pareceram sem cor, sem brilho, sem glamour. Sempre que saía à noite achava tudo monótono, doentio, sem ritmo. As conversas com os amigos pareciam frias, fúteis, machistas. O telemóvel esteve desligado cerca de 2 semanas. A sua mãe começou mesmo a achá-lo mais magro.

- Oh mãe, não estou nada. Não é nada, está tudo bem.

Ele estava ciente que andava esquisito. Mas, conscientemente, não sabia bem o porquê daquele estado.

Dia de folga. Excepcionalmente (desde há muito tempo) dormiu 12 horas a fio. Faltavam quinze minutos para a uma da tarde quando resolveu ir até ao Come Bem pois ainda não tinha fome para o almoço e apeteceu-lhe dar uma volta e quem sabe ajudar um pouco por lá.

Entra. Ao dizer o seu caloroso Bom dia a toda uma série de pessoas que estavam perto do balcão, passa os olhos por toda a sala e, no mesmo canto de há algumas semanas atrás, viu sentar-se (naquele instante preciso) com tamanha delicadeza e encanto a rapariga morena, de olhos castanhos.... Pulou para o outro lado do balcão e aprontou-se para mais um dia de trabalho, mesmo sendo de merecido descanso.

- Bom dia!

- Boa tarde!

- Já fez a sua escolha?

- Hummm .....

- Se me permite posso aconselhar-lhe o prato do dia, que está hoje ainda mais delicioso que outrora. Para beber uma coca-cola bem fresca, sem limão.

- Quase perfeito... E se eu hoje quisesse variar? E não pedisse o habitual?

- Seria, com certeza, uma óptima escolha. Sugerir-lhe uma rosa branca seria muito irreverência da minha parte? – e retirou do arranjo que estava próximo do pórtico poente uma rosa linda, inebriando um perfume único, que lhe estendeu.

- Agradeço pois, com simpatia, se bem que sempre diminuta perto da sua mas... Vou querer mesmo o prato do dia e cola sem limão!

O rapaz não estava em si. Desta vez não corou perto da rapariga de olhos castanhos (de quem nem sabia o nome) mas quando falava com o patrão ficou vermelho que até foi motivo de galhofa.

Não voltou a dizer mais garçolas e limitou-se, nos momentos seguintes, a comportar-se como o mero garçon.

A rapariga de olhos castanhos estava mais sorridente do que quando entrara ali. Pegou no jornal regional antes de almoçar, folheou de trás para a frente as folhas compridas e desajeitadas. O destaque da primeira página, sobre um lançamento de um livro, tomou-lhe alguma atenção. Atendeu duas chamadas que a fizeram rir um pouco. Tudo isto visto pelo olhar atento do rapazote.

Teve uma ideia! Abriu dezenas de gavetas dos armários que ficavam por detrás do balcão na expectativa de encontrar uma folha de papel branca não amarrotada e sem símbolos publicitários a cervejas ou algo do género.

Encontrou, a muito custo e quase a desesperar, uma folha. Tirou a sua caneta de tinta permanente do bolso esquerdo da camisa, refugiou-se num recanto mais calmo e decidiu escrever. Um jorro de palavras invadia-lhe a mente mas nada ainda havia sido escrito na folha. Interrompeu o exercício de selecção de palavras para ir tirar três cafés e fazer a conta de mais uma mesa.

Voltou a pegar na caneta e escreveu:


A delicadeza de tudo o que contemplo

em si e a magia que fica no ar quando está

perto fazem-me cometer a ousadia de lhe

enviar este bilhete.

As palavras não são o meu forte mas

se for preciso transformo-me em escritor

para captar a sua atenção: aceita tomar o

café mais tarde, em local agradável e em

minha companhia?

Às 16horas no jardim?

Filipe

Atrevimento?!


Quando levou a conta deixou, por baixo do talão, o bilhete, dobrado em quatro partes milimetricamente iguais.

Não me pareceu, a mim pelo menos, que tivesse havido surpresa na descoberta do bilhete. O que lhe ia na alma não detectei mas fiquei curiosa. O rapaz seguia, de longe, todos os seus movimentos. Ela colocou o dinheiro no pratinho. Retirou o bilhete e colocou-o em cima da mesa. Ergueu-se, colocou a carteira na mala. Fechou-a. Segurou o papel na mão esquerda e quando se preparava para ajeitar a cadeira o rapazote chegou perto da mesa (e na certeza que ela não tinha sequer aberto o bilhete) perguntou:

- Deseja mais alguma coisa?

A resposta veio, serena e doce.

- Há instantes especiais, não há?

Tentou responder - os movimentos dos seus lábios comprovaram isso - mas não se ouviu som algum. Ela sorriu abertamente e disse:

- Há palavras que se pressentem mesmo sem antes as lermos...

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Hoje uma crónica que prima por sensibilidade e jovialidade.
Nem sempre os momentos são poéticos e hoje, dia-não-póetico pode-se escrever noutro tom... crónica!

1 comentário:

Catraia_Sofia disse...

Sim a surpresa ainda existe, como existem momentos encantados na vida real de cada um de nós!

E a poesia está bem perto, mesmo quando não a esperamos...!

beijokas